Falácia e grosseria: o homeschooling segundo mais dois “especialistas” – Opinião

No dia 27 de junho, a educação domiciliar (em inglês, homeschooling) foi assunto de discussão no programa Brasil das Gerais, transmitido pela emissora de televisão estatal Rede Minas (vídeo abaixo). O objetivo – o confesso, ao menos – era “questionar as vantagens e desvantagens” da prática e “se é saudável tirar uma criança ou adolescente da escola regular”. Foram convidados para o programa Ricardo Dias, que educa, há dois anos, os dois filhos em casa e é presidente da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED); Cleber Nunes, que pratica a educação não-escolar há quase sete anos; o sociólogo Rudá Ricci e a pedagoga Lucíola Santos. Graças à dupla de especialistas, o show se tornou uma exibição lamentável de desonestidade argumentativa e de ignorância dos fatos.

O rol de convidados foi mal pensado. Para o bem do debate, deveriam ter sido convocados estudiosos contrários e outros favoráveis à prática em questão. Longe disso, o que se fez foi chamar dois supostos especialistas que pouco conheciam o assunto, ambos contrários à educação domiciliar, e permitir que atacassem, com artilharia vulgar, a honra e o estado emocional dos pais convidados. Ricci e Santos não se muniram de fatos e pesquisas. Nem se dispuseram a ouvir o que dois dos mais longevos praticantes brasileiros da educação não-escolar (que, juntos, somam oito anos de experiências) tinham a falar. Foi por isso que a dupla interrompeu diversas vezes as falas de Cleber e Ricardo, e não esperou (nem a apresentadora, em alguns momentos) que concluíssem seus argumentos e relatos. Não foram honestos, não seguiram as regras da boa argumentação. Pelo contrário, eles se armaram com peças de acusação direcionadas às pessoas dos pais – não só daqueles que ali estavam, no estúdio, mas de todos os que adotam, responsável e corajosamente, um tipo de educação ainda incipiente no Brasil.

Analiso, a seguir, selecionando algumas passagens, de que modo Rudá Ricci e Lucíola Santos defenderam suas opiniões, como havia pouco de ciência e de bom senso argumentativo no seu discurso. Abaixo, as falácias cometidas por ambos são destacadas em itálico.


Rudá Ricci iniciou sua participação no debate – aos 13:56 do vídeo – interrompendo Cleber Nunes. Cleber, perguntado sobre os processos judiciais sofridos por sua família, dizia que ele mesmo e sua esposa foram condenados, cível e criminalmente, por abandono intelectual, após seus filhos serem aprovados em vestibular de direito (em 2007, quando eles tinham 13 e 14 anos) e em prova da Secretaria de Educação de Minas Gerais imposta pelo juiz da vara criminal (em 2008). Acertadamente, ele concluiu: “Percebi que o interesse não estava na educação deles, mas que o interesse da Justiça era tão-somente que eles estivessem na escola.”

Depois de ouvir isso, Ricci desfia seu contra-argumento. Confusamente, o sociólogo compara (com falsa analogia) o direito de educar com o (inexistente, segundo ele) direito ao suicídio: “O Estado não defende só a pessoa: defende a sociedade, os direitos.” Para Ricci, que discorda de que as pessoas sejam donas de seus corpos, um sujeito é incapaz de matar-se sem pôr outros em risco. Mas o que é que isso tem a ver com educar fora de escolas? É que essa prática também seria um risco coletivo: “É o fim da democracia, da vida social.” Por quê? Cleber, Ricardo e TODOS os que educam em casa, garante Ricci, estão “trazendo uma cultura do egoísmo e do individualismo extremo” (falácia da omissão, ataque à pessoa e conclusão irrelevante). Fatos? Pesquisas?³ Nada. Será que a vida social e a democracia inexistem ou sofreram duro golpe nos Estados Unidos, onde a prática é comum há mais de três décadas e, hoje, há mais de 2 milhões de crianças e adolescentes educados em casa?¹
Testemunhamos, com o passar do programa, um Rudá Ricci cada vez mais desleal em seus argumentos. Recorrendo mais uma vez à falsa analogia e atacando a pessoa dos convidados, Ricci compara pais praticantes da educação em casa com políticos e marketeiros (14:55, parte 1). Em comum, alega, eles deixariam “tirar foto do aluno pra fazer propaganda do curso”, o que iria “causar um dano imenso [ao aluno]”. A acusação, sabemos, é irrelevante para verificar vantagens ou não da educação em casa. E não há, é óbvio, nenhuma evidência de que tal “exposição” (fantasiosa!) causasse danos aos estudantes domiciliares.

Ricci tentou, desde o início, construir um espantalho para ter em quem bater. O pai que educa em casa não está, necessariamente, “dando aulas” domiciliarmente. Há quem adote, por exemplo, métodos como os comumente chamados aprendizagem natural e auto-aprendizagem (citados por Ricardo, a partir dos 8:22 do primeiro bloco) e que não acreditam que os filhos precisem ser “ensinados”. Mas Ricci afirma exatamente o contrário (falácia da omissão, a partir dos 14:33), certo de que os pais precisam ser “técnicos” para ter sucesso educando em casa. Cleber não sustentou, em momento algum do programa, nem que o testemunho de seus filhos em audiências públicas, nem que avaliações formais sejam, para ele, evidência de que a educação em casa é tecnicamente “boa”. Mas Ricci, de novo, inventa um fato e atribui a Cleber um argumento que lhe é estranho (a partir dos 15:09).

A professora Lucíola Santos, chamada a participar do debate aos 18:58 de programa, articulou de modo mais claro os seus argumentos, o que tornou mais evidente as deficiências deles. Lembremos, antes, mais uma vez, que o objetivo do programa é discutir as “vantagens e desvantagens da educação domiciliar”. Pois bem. Vejamos os argumentos de Santos: (1) Os pais que educam em casa apontam defeitos na escola, mas não se mobilizam para melhorá-la. Isso se dá (assim entendi) porque eles não acreditam no Estado; (2) Os pais que educam em casa (supus que houve generalização) “tem alguma espécie de posição político-religiosa que os mobiliza a não querer que seus filhos convivam com pessoas diferentes”. Isso levaria a “processos de fundamentalismo, em guetos, em situações inviáveis do ponto de vista social”; (3) Os pais não tem competência, nem tempo, nem condições para ensinar todos os conteúdos escolares às crianças até a idade de 17 anos; (4) Se a legislação permitir que pais eduquem em casa, haverá caos – porque “muitos pais podem fazer bem, outros, não” – e injustiça – “porque os pais não são os donos das crianças.”

O primeiro argumento é mais um ataque à pessoa despropositado. O que o fato de alguns pais (e não todos!) não “acreditarem no Estado” como agente de educação nos diz da eficácia ou ineficácia do ensino domiciliar, das suas vantagens ou desvantagens? O segundo, mais um ataque à pessoa, também não nos revela nada da questão em debate! A debatedora não cita nenhum fato que corrobore a afirmação de que pais que tiram seus filhos da escola evitam a convivência deles com “pessoas diferentes”. O terceiro argumento torna constrangedoramente manifesta a ignorância de Lucíola Santos sobre o assunto. A educação domiciliar, já dissemos, não é, necessariamente, educação curricular, conteudista, programática. Considerando este fato, a suspeita em relação a “competências, tempo e condições” é, toda ela, vaga e completamente alheia à ciência.

O quarto argumento de Santos tampouco se sustenta em fatos. Ela prevê uma situação de “caos” porque “muitos” pais podem “fazer bem” à educação domiciliar e outros pais, não. Ora, os pais que educam em casa não defendem que a prática seja imposta sobre outras famílias. Aliás, suponho que a professora ainda não conhece o caso do Texas, estado americano que conta, segundo o Texas Home School Coalition, com cerca de 120 mil famílias educando (não caoticamente) em casa, e onde os pais não precisam ter nem certificado de professor para fazê-lo? Recomendo-lhe o site da organização: http://www.thsc.org. No mais, Santos, que não definiu o que seria “fazer bem” a educação domiciliar (o que impossibilita o debate sobre o termo), garantiu, citando o Estatuto da Criança e do Adolescente, que os pais não são “os donos” dos filhos², sem dizer bem em que isso é relevante para conhecermos “as vantagens e desvantagens da educação domiciliar”.

O nível do debate no restante do programa, acredite, leitor, foi pior – e não merece que nos detenhamos muito nele. Um desfile de ataques pessoais (uma cena especialmente desconfortável tem começo aos 17:12), de apelos emocionais (aos 15:13), apelo à autoridade (a partir dos 7:13 e dos 7:33), apelo à maioria (a partir de 15:48)… E por aí vai.

Encerro o texto dirigindo-me a Rudá Ricci e aos acadêmicos que, como ele e Lucíola Santos, opinam sobre a educação domiciliar, sem antes pesquisarem devidamente o assunto. Na segunda parte do programa, Ricci vaticina que “shopping curriculares” como os que teriam sido feitos pela família de Gilmar e Vânia Lúcia Carvalho (apresentada no início do segundo bloco) são um “erro estrondoso que nós só vamos ver dali a pouco, quando tiver 25, 30 anos…”. Ricardo Dias alegou que “as pesquisas de hoje mostram o contrário”, mas não conseguiu, na hora, citar nenhuma. Então, Ricci, respondeu-lhe (7:50): “Não sei que pesquisas, porque eu sou pesquisador da área… Você há de convir: fui professor de mestrado e de doutorado da educação, eu conheço a literatura. Não existe pesquisa que diga isso que você tá dizendo… Não existe. É definitivo isso.”

As pesquisas existem. A seguir, cito dez delas que tem por objeto a socialização e as realizações acadêmicas de crianças e adolescentes educados em casa. Recomendo todas para os interessados na matéria. Bom proveito!

1. Delahooke, Mona. (1986). Home Educated Children’s Social, Emotional Adjustment and Academic Achievements:A Comparative Study. Unpublished doctoral dissertation. Los Angeles, CA: California School of Professional Psychology.
2. Knowles, J. Gary (1991). Now We Are Adults: Attitudes,Beliefs, and Status of Adults Who Were Home-educated as Children. Paper presented at the annual meeting of the American Educational Research Association, Chicago, April 3-7.
3. Medlin, Richard G. (2000). Home schooling and the question of socialization. Peabody Journal of Education, 75(1 & 2), 107-123.
4. Ray, Brian D. (2010, Frebuary 3). Academic Achievement and Demographic Traits of Homeschool Students: A Nationwide Study. Academic Leadership Journal, 8(1).
5. Ray, Brian D. (2003). Homeschooling Grows Up. National Home Education Research Institue: Salem, Oregon.
6. Rudner, Lawrence M. (1999). Scholastic achievement and demographic characteristics of home school students in 1998. Educational Policy Analysis Archives, 7(8).
7. Shyers, Larry E. (1992). A comparison of social adjustment between home and traditionally schooled students. Home School Researcher, 8(3), 1-8.
8. McDowell, Susan. (2004). But What About Socialization? Answering the Perpetual Home Schooling Question: A Review of the Literature. Philodeus Press.
9. Taylor, John Wesley. (1986 May). Self-Concept in Home Schooling Children. Doctoral dissertation, Andrews. University, Michigan.
10. Van Pelt, D.A., Allison, P.A. and Allison, D.A. (2009). Fifteen Years Later: Home Educated Canadian Adults. London, ON: Canadian Centre for Home Education (Monograph).

NOTAS:
¹ Brian D. Ray. (2011). 2.04 Million Homeschool Students in the United States in 2010. National Home Education Research Institute.
² Esse argumento, que já chegou nas altas esferas da Justiça brasileira, não é novo. Em 2001, o ex-ministro do STJ Francisco Peçanha Martins, então relator do caso da família Vilhena Coelho (que defendia o direito de educar em casa os seus três filhos mais velhos), arguiu que “os filhos não são dos pais”. A família teve o direito negado por seis votos a dois.
³ Duas pesquisas recentes (Ray, 2003; Van Pelt, Allison & Allison, 2009) verificaram o engajamento social de adultos que foram educados em casa nos Estados Unidos e no Canadá. Os resultados: comparados com seus pares não educados domiciliarmente, eles se mostraram mais frequentes em grupos de atividades e organizações comunitárias, e mais participativos nas eleições em seus países.

André de Holanda é graduando em Sociologia na Universidade de Brasília. Atualmente, prepara trabalho de conclusão de curso sobre a prática da educação domiciliar no Brasil.
No Mundo e no Livros

 

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